quinta-feira, 14 de abril de 2011

POR UMA ADVOCACIA PÚBLICA INDEPENDENTE

Albert Abuabara
Assessor para Assuntos Jurídicos do Município de Porto Alegre
Artigo publicado em abril de 2011, na revista nº 63 da Associação do Procuradores do Município de Porto Alegre - APMPA.

Nesse momento aguçado da tramitação do projeto de emenda à Constituição 153/2003 vem à tona, novamente, a discussão do reconhecimento do verdadeiro enquadramento constitucional da Advocacia Pública.

Paralelo a isso, decorridos alguns anos de amadurecimento, os Procuradores Municipais de Porto Alegre - compreendidos os Assessores para Assuntos Jurídicos - estão vertidos com a discussão do anteprojeto de sua Lei Orgânica da Advocacia Pública.

Há anos constata-se uma crise ou, talvez, falta de conhecimento acerca da real identidade da Advocacia Pública, especialmente a municipal. Reduz-se a questão na seguinte pergunta: a função Advocacia Pública se insere como do Executivo?

A resposta a essa indagação passa pela essência politico-jurídica da função Advocacia Pública e dos cargos jurídicos que a compõem.

Especificamente no Município de Porto Alegre, como é cediço, são dois os cargos jurídicos, os quais guardam, entre si, total identidade, pois são definidos não por suas descrições ou nomenclaturas, mas, sim, pela natureza jurídica de suas atribuições.

A consultoria, assessoria e direção jurídicas e a postulação judicial são atividades da advocacia, cujo exercício nas esferas públicas é privativa da Advocacia Pública.

A experiência mostra que essa dualidade ou a diversidade de cargos jurídicos com identidade, como atualmente ocorre no Município de Porto Alegre, é inconveniente e prejudicial pela superposição de esforços, pelo aumento de despesas, pelos conflitos de classe, em suma, pelo comprometimento da agilidade e eficiência na prestação dos serviços públicos.

Aliás, na União ocorria situação semelhante. A solução foi a reestruturação dos cargos, unificando-os, questão que, levada ao Judiciário, foi chancelada pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADI 2.713, no voto da relatora Ministra Ellen Gracie:
(...) Note-se que o dispositivo mencionado prevê o desempenho das mesmas atribuições constitucionais da AGU por Assistentes Jurídicos e Advogados da União. Tratando de questão análoga à presente no julgamento da ADI n.º 1.591, Rel. Min. Octavio Gallotti, este Supremo Tribunal reconheceu a similitude entre as carreiras de Auditor de Finanças Públicas e de Fiscal de Tributos Estaduais, ambas do Estado do Rio Grande do Sul, a permitir, sem agressão ao postulado do concurso público, a criação de uma única carreira, de Agente Fiscal do Tesouro (...)

(...) No presente caso, vejo, com maior razão, pela forte identidade de atribuições, a inocorrência de afronta ao princípio do concurso público na transformação dos cargos em exame. Ressalte-se que o art. 11 da LC n.º 73/93, ao disciplinar um dos órgãos de execução da Advocacia-Geral da União, qual sejam, as Consultorias Jurídicas dos Ministérios, não vinculou, em nenhum momento, o exercício dos Assistentes Jurídicos exclusivamente nestes órgãos. Tanto é assim, que a Portaria n.º 1.014, de 6.10.2000, DOU de 9.10.2000, da Advocacia-Geral da União, ao atualizar o quantitativo e a distribuição de vagas relativas a cargos de Assistentes Jurídicos para o fim de provimento por meio de concurso público veiculado pelo Edital de n.º 91, de 18.12.1998, DOU de 20.12.98, destinou vagas referentes à citada carreira em outros órgãos que não as Consultorias Jurídicas dos Ministérios, como as Procuradorias da União nos Estados e Órgãos da Advocacia-Geral da União em Brasília-DF, locais onde também são lotados Advogados da União (...)
No mesmo sentido, foi o voto do Ministro Ricardo Lewandowski, dado quando do recente julgamento do RE 558.258 (acórdão publicado em 18.3.2011), tratando da abrangência do termo “Procuradores”, especialmente no que diz respeito ao previsto no art. 37, inc. XI, da Constituição da República. Disse o Ministro:
(...) Com efeito, registro que o vocábulo “Procuradores”, em nosso ordenamento jurídico, mostra-se polissêmico, servindo para designar tanto os membros do Ministério Público, como os Advogados Públicos que atuam na defesa do Estado. Ana Cândida da Cunha Ferraz, em parecer sobre o tema, define os últimos como aqueles que “(...) exercem atividade jurídica – defesa judicial e extrajudicial e consultoria jurídica – dos entes federativos e de suas entidade descentralizadas, com personalidade de direito público (tais como autarquias e fundações públicas)”.

(...) Acrescento, ainda, que a Constituição quando utilizou o termo “Procuradores” o fez de forma genérica, sem distinguir entre os membros das distintas carreiras da Advocacia Pública (...)

Esse foi, mutatis mutandis, o entendimento de Lucas Rocha Furtado, ao comentar o art. 37, XI, da Constituição Federal, ao incluir os Procuradores Municipais na designação “Procuradores”:
“A rigor, em relação aos procuradores municipais, poder-se-ia indagar se o teto aplicável seria o subsídio dos prefeitos ou dos desembargadores. Em razão de o texto Constitucional não ter feito qualquer menção ou distinção entre procuradores estaduais e municipais (‘aplicável este limite’ – correspondente ao subsídio dos desembargadores – ‘aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos’), parece-nos mais correto interpretar este trecho do citado inciso XI no sentido de que os procuradores municipais não se sujeitam ao subsídio dos prefeitos, mas ao dos desembargadores” (...)
Ao insculpir a nossa organização político-jurídica, a Constituição da República calca a Advocacia Pública ao lado das três funções de Poder. Qualifica-a como função de Estado à Justiça. Por assim dizer, não é gratuito afirmar seu caráter institucional e permanente, cuja destinação é a de tutelar o regime democrático e a ordem jurídica, provendo as funções de Poder com o necessário para que seus atos atentem à justiça e à legalidade.

De acordo com Michel Temer (1), ressalta-se a razão pela qual, assim como a Advocacia Pública, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário são referidos como função e não como Poder. Diz o autor:
(...) As palavras, para o direito, têm o significado que este lhes empresta. Variam as acepções de acordo com o sentido que o constituinte lhe atribui.

A expressão “poder” não escapa a essa regra. São vários os seus significados. Carlos Ayres de Britto foi quem, com mestria, focalizou o tema.

É ele utilizado em três acepções: a) poder enquanto revelação da soberania (art. 1.º, parágrafo único, da CF); b) poder enquanto órgão do Estado (art. 2.º da CF); c) poder enquanto função (arts. 44, 76, e 92 da CF). Tais dispositivos devem ser lidos exemplificativamente da maneira que segue. O art. 1.º, parágrafo único: “o governo emana do povo”… O art. 2.º: São órgãos da União, independentes e harmônicos entre si, o legislativo, o Executivo e o Judiciário”. O art. 44: “A função legislativa é exercida pelo Congresso Nacional”… etc. (...)
Vê-se que o Poder é uno, é atributo do Estado. As funções de Poder são apenas três, Executivo, Legislativo e Judiciário. Ao lado delas, há as demais funções de Estado, dentre as quais a Advocacia Pública.

Como corolário, extrai-se disso o caráter unitário e indivisível da Advocacia Pública – um só órgão, uma só função, sujeito a uma só chefia, limitado, claro, a cada unidade da federação.

Por oportuno, vale trazer o estudo do ilustre Hugo Nigro Mazzilli (2) para a Assembléia Nacional Constituinte de 1988.

O defendido e combatido pelo mestre materializou-se no que concebemos hoje como Ministério Público e vem, nesse momento de discussão, com total propósito para a Advocacia Pública. In verbis:
(...) Analisando suas principais funções institucionais (o zelo pela observância da Constituição e das leis, a defesa dos interesses indisponíveis da sociedade, a promoção da ação penal ou da ação civil pública, conforme artigos 1.º e 3.º da Lei Complementar federal n. 40, de 1981), – veremos que todas estas têm natureza administrativa: a incumbência de acusar, de opinar como custos legis, de promover a ação — não são atividade jurisdicional (atuar junto ao Judiciário naturalmente não significa prestar jurisdição) nem legislativa (a tarefa de fiscalizar a observância das leis não se confunde com a típica atividade de sua elaboração).

O enquadramento do Ministério Público dentro do Poder Executivo, portanto, explica-se apenas e tão somente pela natureza administrativa de suas funções e nunca por vínculo de subordinação entre ambos, ainda que eventual e aprioristicamente concebida.

De qualquer forma, porém, a solução que nos parece a melhor, justamente para contribuir de forma pragmática para esse desiderato de autonomia e independência da Instituição, não é erigir o Ministério Público a um suposto “quarto Poder”, nem colocá-lo dentro dos rígidos esquemas da divisão tripartite atribuída a Montesquieu, mas sim inseri-lo em título ou capítulo próprio, ou seja, colocando-o, lado a lado com o Tribunal de Contas, entre os órgãos de fiscalização e controle das atividades governamentais, ou, como já o fizera a Constituição de 1934, entre os “órgãos de cooperação nas atividades governamentais” (artigos 95 a 98) (3). (...)
Nessa mesma linha, corroborando todo o exposto, o Ministro Dias Toffoli, também no julgamento do RE 558.258, ao proferir seu voto, muito bem asseverou:
(...) A Constituição brasileira trouxe a advocacia-pública na segunda sessão do Capítulo IV do Titulo IV da Constituição Federal. O Titulo IV trata da Organização dos Poderes; o Capítulo I do Titulo IV trata do Poder Legislativo; o Capítulo II, do Poder Executivo; o Capítulo III, do Poder Judiciário.

No Capítulo IV, trata das chamadas Funções Essenciais à Justiça. Na Seção I, do Ministério Público; na Seção II, da Advocacia Pública; na Seção III, da Defensoria Pública. (...)

(...) Ora, o que temos aí? Temos que tanto o Ministério Público, quanto a Advocacia Pública, quanto a Defensoria Pública são instituições que não integram nenhum dos Três Poderes. Eles estão separados tanto do legislativo, quando do Executivo, quanto do Judiciário. É bem por isso que não temos, na nossa tópica constitucional, a possibilidade de dizer que o procurador é da autarquia. Não existe isso na nossa disciplina constitucional. Se formos analisar a Advocacia-Geral da União, a lei de organização do Poder Executivo não faz referencia a ela. Quem integra o Poder Executivo, única e exclusivamente, é o Advogado-Geral da União, e não a Advocacia-Geral da União. E nem poderia ser diferente, porque, no texto constitucional, ela não está dentro do Poder Executivo. Bem por isso que os procuradores federais, que fazem a representação judicial e o trabalho de consultoria das autarquias federais, não integram essas autarquias. Eles podem até ocupar o espaço físico, o espaço público, para bem prestar o seu serviço de função essencial à Justiça, no seu trabalho, seja de contencioso, seja de consultoria, in loco, naquela autarquia, naquele prédio, naquele local, fazendo uso de computadores ou de outros materiais e ocupando, inclusive, em alguns casos, cargos em comissão. Mas eles não integram aquela autarquia. (...)
(...) Os procuradores, sejam os procuradores do Estado, que prestam a consultoria e a defesa do Estado em juízo ou no seu trabalho consultivo, para a administração direta, sejam os procuradores autárquicos, eles devem integrar uma única instituição que é a Procuradoria do Estado.

E a Constituição Federal, ao tratar, na Emenda 41, da nova redação ao inciso XI do art. 37, exatamente quando faz referencia aos procuradores, ela o faz indistintamente, como muito bem destacou Vossa Excelência em seu brilhante voto.

Bem por isso, Senhor Presidente, até gostaria de avançar nos argumentos, dada a importância dessa tópica – o status da Advocacia Pública como fora dos Três Poderes –, mas me reservo – e com certeza haverá outra oportunidade para esse tipo de discussão – para um outro processo, haja vista que nós temos tantos processos a julgar na Turma. (...)
Em resposta à indagação inicialmente posta, mostra-se, estreme de dúvidas, a Advocacia Pública como função de Estado, não se prendendo a qualquer uma das três funções de Poder, sequer à Executiva.

Esse é o tempo. Devemos centralizar nossas forças para o desenvolvimento da Advocacia Pública. Compor uma Advocacia Pública cujo interesse de ingresso na instituição transcenda a seleção ordinária para ser, também, vocacionada. Enfim, compor uma Advocacia Pública nova, acreditável, com conquistas de uma atuação altiva, independente e séria na tutela dos interesses Municipais.

(1) Michel Temer. 2004. Elementos de Direito Constitucional. Editora Malheiros. 19ª Edição, 2ª tiragem. Página 119/118.

(2) Artigo publicado em 1987, na revista Justitia 137:57, do Ministério Público do Estado de S. Paulo, apresentando estudo preparatório para um projeto de Ministério Público na Assembléia Nacional Constituinte.

(3) Referência à Carta de 1969.

Um comentário:

  1. Caro colega Dr. Albert Abuabara, parabéns pelo excelente artigo, onde se vê uma exposição do papel da advocacia pública muito lúcida e objetiva.
    Abraço,
    Valnor Prochinski Henriques

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