sexta-feira, 5 de novembro de 2010

2. O ADVOGADO PÚBLICO NAS FUNÇÕES DE CONSULTORIA E ASSESSORAMENTO

Maria Sylvia Zanella Di Pietro*

Não há dúvida de que na função de consultor, o advogado público é e deve ser muito mais independente; ele tem que ter independência, no sentido de que não pode vincular-se a ninguém no que diz respeito à emissão de seus pareceres.

Isto porque, na função de consultor, o advogado público participa, de forma intensa e ativa, do controle da Administração Pública.

Com efeito, além do controle externo, exercido pelo Poder Judiciário e pelo Legislativo, este último com auxílio do Tribunal de Contas, a Administração Pública sujeita-se a um controle interno, administrativo, que é exercido no interesse da Administração, por autoridade e órgãos da própria Administração; dentre esses órgãos de controle inserem-se os que exercem advocacia pública.

Esse controle se exerce mediante provocação dos particulares, por meio do direito de petição, assegurando pelo artigo 5º, inciso XXXIV, da Constituição Federal, ou por via de recursos administrativos interpostos perante a autoridade superior à que proferiu o ato impugnado. Mas, independente de provocação pelo interessado, o controle ainda se exerce “ex officio”, dentro do poder de autotutela de que dispõe a Administração Pública, consistente em revogar os atos inconvenientes ou inoportunos, e anular os atos ilegais. Esse poder está reconhecendo pela súmula 473 do Supremo Tribunal Federal.

No exercício desse controle, as autoridades socorrem-se da advocacia pública. Esta não age por iniciativa própria. Ela não tem função de auditoria, de fiscal da autoridade administrativa. Ela se limita a responder a consultas que lhe são formuladas pelas autoridades, quer sobre atos que ainda vão praticar (e, nesse caso, o controle é prévio), quer sobre atos já praticados, sobre os quais surjam dúvidas quanto à legalidade (e, nesse caso, o controle é posterior).

A regra é que as autoridades administrativas, mesmo quando revelam inconformismo com a submissão à lei e ao Direito – que muitas vezes constituem entraves aos seus objetivos – consultem a advocacia pública, ainda que a lei não exija sempre essa consulta. É interessante que, mesmo quando quer praticar um ato ilícito, a autoridade quer faze-lo com base em parecer dado pelo órgão jurídico; para esse fim, ela pede, pressiona, exige um parecer que lhe convenha.

Ela quer, na realidade, dar uma aparência de legalidade a um ato ilegal; e, para esse fim, quer refugiar-se atrás de um parecer jurídico. Na hora da responsabilidade, poderá proteger-se com a escusa de que agiu com base em parecer do órgão jurídico. O advogado público que cede a esse tipo de pressão amesquinha a instituição e corre o risco de responder administrativamente por seu ato.

O advogado público que exerce uma função de consultoria deve ter presente vários pontos incontroversos:

a) O seu papel é muito diferente do advogado público que representa o Estado em juízo. Este assume a posição de parte. Daí a sua posição ser parcial. O consultor, da mesma forma que o juiz, tem de interpretar a lei para apontar a solução correta; ele tem de ser imparcial, porque protege a legalidade e a moralidade do ato administrativo; ele atua na defesa do interesse público primário, de que é titular a coletividade, e não na defesa do interesse público secundário, de que é titular a autoridade administrativa.

b) A atividade de consultoria está fora da hierarquia administrativa. Com efeito, sabe-se que duas idéias são básicas na organização administrativa: uma delas é a de distribuição de competências; e o próprio direito positivo prevê que os órgãos que compõem a Administração Pública e faz uma distribuição de competências entre esses órgãos todos. Mas não basta essa previsão legal de competências; sabe-se que na Administração Pública toda competência está prevista em lei. Além da idéia de distribuição de competências, há necessidade de estabelecer-se uma relação de coordenação e de subordinação entre os vários órgãos administrativos, a fim de se assegurar uniformidade de orientação, unidade de direção. Esta segunda idéia corresponde aquilo que se chama de princípio de hierarquia. Toda a Administração Pública é organizada hierarquicamente de tal maneira que os órgãos inferiores ficam subordinados aos superiores, até chegar, num escalonamento, ao chefe do Poder Executivo. O Chefe do Poder Executivo expede as suas orientações, instruções, normas para os subordinados e os órgãos subordinados, por sua vez, preparam, fornecem os elementos para que os órgãos superiores tomem as suas decisões.

A distribuição de competências pode ser feita de maneira diferenciada: alguns órgãos recebem maior rol de competências; as vezes, a competência é a distribuída entre vários órgãos de maneira concorrente, outras vezes é distribuída com exclusividade. Quanto maior for o grau de concorrência de competências, maior a possibilidade de controle dos órgãos superiores sobre os órgãos subordinados, porque eles têm competências dentro da mesma matéria; nesses casos, o órgão superior tem a responsabilidade de controle dos órgãos inferiores.

Sendo competência absolutamente exclusiva, isto afasta qualquer possibilidade de controle e o órgão fica praticamente fora da hierarquia da Administração Pública, no que diz respeito à sua função.

Dentre os órgãos em que isto ocorre estão precisamente os consultivos. Ainda que eles funcionem junto a um ministério ou uma Secretaria de Estado ou Município, eles estão fora da hierarquia, não recebem ordens, instruções, para emitir o parecer neste ou naquele sentido. Quem emite um parecer, tem absoluta liberdade de apreciar a lei e de dar a sua interpretação. Isto é inerente á própria função, mas do que ao órgão; ou ele é independente, ou não precisa existir.

c) O parecer proferido pelo consultor, quando acolhido pela autoridade administrativa, integra o ato praticado por esta última, por corresponder à motivação, requisito concernente à formalidade, hoje considerado essencial à própria validade do ato administrativo. De modo que, se o ato for considerado ilegal por vicio quanto a motivação, o advogado é tão responsável quanto a autoridade que decidiu.

É evidente que existe sempre a possibilidade de divergências de interpretação; o simples fato de o advogado proferir um parecer cuja interpretação seja afastada pelo Poder Judiciário ou mesmo pelo Tribunal de Contas não é suficiente para acarretar a sua responsabilidade. Mas isto poderá ocorrer, em caso de erros grosseiros, culpa grave ou dolo.

Por tudo isto, é essencial que o corpo de advogados públicos, em especial na área de consultoria, seja protegido pelo instituto da estabilidade.

Os problemas maiores da advocacia pública consultiva são:

a) A sua dispersão por vários órgãos, o que tira, muitas vezes, a uniformidade de interpretação; haveria necessidade de o Procurador Geral fixar os órgãos consultivos se limitassem a aplicar a orientação adotada pela Procuradoria Geral em caráter normativo;

b) O caráter em regra opinativo de suas manifestações, afastadas com muita facilidade pelos órgãos consulentes: perde-se de vista a idéia de que a interpretação da lei é atividade complexa que incumbe ao profissional da área jurídica; o próprio artigo 1º do Estatuto da OAB inclui entre as atividades privativas de advogado as de consultoria, assessoria e direção jurídicas. Se o órgão de cúpula da Advocacia Pública consultiva proferiu o parecer, dando a sua interpretação da lei, esta só poderia ser afastada por outro profissional da área jurídica. Isto porque, se o assunto envolve apenas aspectos jurídicos, não se pode aceitar que sobre o mesmo acabe por prevalecer a decisão política, que envolve grande dose de discricionariedade não existe quando o trabalho de interpretação aponta a única solução possível perante o Direito. O ideal seria que a lei estabelecesse, com certa dose de precisão, os casos em que a manifestação do órgão jurídico é obrigatória, o que só acontece em determinadas hipóteses;

c) O advogado público da área consultiva é sempre visto com um profissional que “atrapalha”, porque é a ele que incumbe dizer à autoridade aquilo que a lei permite e o que a lei não permite fazer; daí, mais uma vez, a idéia de que é indispensável a garantia da estabilidade para os profissionais da área; os cargos em comissão, comuns nas funções de assessoria, constituem, muitas vezes, um convite as falsas interpretações, colocando em risco a dignidade da instituição, por ofensa aos princípios da legalidade e da moralidade administrativa. Na obra, já citada, Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 112-114, tivemos oportunidade de apontar a importância da aplicação do principio da moralidade administrativa na interpretação das normais jurídicas. Ali foi realçado que “o uso dos métodos mais desvinculados da letra da lei, se idealizados com o propósito de buscar a melhor interpretação, pode, no entanto, levar a resultados funestos, quando o interprete usa de seus conhecimentos para dar à lei uma significação que ela na realidade não possui, desrespeitando, freqüentemente, aqueles mesmos valores que deveria proteger. Nesses casos, a interpretação é utilizada como instrumento ou como artifício para escapar ao comando da lei. Este tipo de comportamento amesquinha o trabalho de interpretação, por ofensa aos preceitos éticos da Administração Pública, que lhe atribuem o papel de defesa e garantia da legalidade, da moralidade administrativa e do interesse publico. A tal ponto chega essa forma de interpretação que pode levar e realmente leva ao aparecimento de um sistema jurídico paralelo aquele oficialmente estabelecido. Agustín A. Gordillo, em sua obra sobre a “administração paralela” (La administración paralela, Buenos Aires, Editorial Civitas S.A., 1982, p. 60-61), realça a existência de uma Constituição formal e, ao lado desta, de uma Constituição real, que equivale a um sistema paraconstitucional; a primeira é a efetivamente promulgada pelo poder constituinte e, a segunda, aquela que, na realidade, se aplica. O mesmo se pode dizer de inúmeras leis ordinárias que, por força de interpretação, acabam tendo significado completamente diverso daquele que seria o ideal”.

Está certo que o consultor ou assessor jurídico não se limite a levantar óbices jurídicos àquilo que a autoridade quer fazer; ele deve apontar alternativas ou opções; mas, o que não pode fazer é falsear a interpretação para atender a pressões dos superiores hierárquicos.
...
6. Conclusões

O ideal para a Advocacia Pública seria pelo menos:

1) que fosse ampliado o rol de ações com efeitos “erga omnes”,

2) que a função consultiva não ficasse dispersa por vários órgãos, porque isto facilita a proliferação de interpretações diferentes;

3) que os órgãos consultivos atuassem desvinculados de órgãos essencialmente políticos, já que os mesmos, precisamente por sua natureza, comprometem a independência da instituição;

4) que o Advogado Geral tivesse mandato determinado, para poder atuar com maior independência;

5) que suas manifestações, em matéria jurídica, fossem vinculantes para toda a Administração Pública;

6) que aos órgãos contenciosos fosse dada a atribuição obrigatória de representar perante as autoridade governamentais para que as decisões uniformes da jurisprudência se aplicassem a todas as situações iguais.

*Maria Sylvia Zanella Di Pietro é Professora Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Advogada em São Paulo.

Este artigo foi extraido da Revista Eletrônica da Advocacia Pública - Coletânea Elaborada pela Comissão da Advogado Público da OAB/SP 2007/2009; paginas 145/147 e 151.

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