sexta-feira, 5 de novembro de 2010

ADVOCACIA PÚBLICA

José Afonso da Silva*

1. Advocacia é uma profissão, mas não é apenas uma profissão, é também um múnus e "uma árdua fatiga posta a serviço da justiça", como disse Couture. É, especialmente, um dos elementos da administração democrática da justiça. É a única habilitação profissional que constitui pressuposto essencial a formação de um dos Poderes do Estado: o Poder Judiciário.

2. Pois bem, a Advocacia Pública é tudo isso e mais alguma coisa, porque, na medida mesma que se ampliam as atividades estatais, mais ela se torna um elemento essencial ao funcionamento do Estado Democrático de Direito. Toda atividade do Estado se desenvolve nos quadros do direito. Assim é mesmo "quando os preceitos positivos não vinculam a Administração e essa exercita faculdades discricionárias, tende a atuação do justo, suprema e constante aspiração desse organismo essencialmente jurídico que é o Estado". Pois, o "arbítrio é inconcebível na atividade do Estado, regida sempre por um escopo ético e por uma valoração de interesse público". Esse sentido ético-jurídico da atividade estatal requer avaliação especializada que pondere e controle o seu exercício, ao mesmo tempo em que defende a posição jurídica do Estado em face dos particulares. Desponta, aí, como lembra Tomás Pará Filho, "o exercício dos chamados direitos subjetivos da Administração". Então, pode-se dizer, conclui ele, "anotando o relevo do problema, que os Procuradores estão para os interesses, direitos e obrigações do Estado assim como para defesa dos interesses e direitos dos particulares estão os advogados em geral. Uns e outros, aliás, têm dignidade profissional própria, expressa por norma de ética profissional. Exercem, efetivamente, os advogados do Estado, ministério próprio e peculiar, indispensável serviço público, que, dada a proeminência da atividade estatal, se constitui em elemento indispensável à administração da justiça... Ligados ao Estado, por vínculos jurídicos funcionais, por isso mesmo, os seus deveres ainda se acrescem, avultadamente, em virtude da disciplina específica estabelecida na legislação administrativa".1

3. Esse relevo, a essencialidade e indispensabilidade da Advocacia Pública, desde sempre, revela ser ela ínsita à estrutura do Estado. Quando este era Estado mínimo, a presença da Advocacia Pública também era mais modesta, mas nem por isso ausente, como o prova o nosso sistema constitucional. Assim, no Império, era o Ministério Público que cumpria essa função. Anota Pimenta Bueno, o "governo tem o dever e necessidade de defender perante os tribunais a propriedade e a manutenção dos direitos da coroa ou nacionais", essa defesa incumbia ao Ministério Público, mas o Procurador da coroa é que exercia essa função perante os Tribunais Superiores.2 Era o Ministério Público exercendo a dupla função de promoção da ação penal e de defesa dos interesses do Estado. Igual sistema perdurou no regime da Constituição de 1891, segundo o qual o Presidente da República designaria, dentre os membros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República, cujas atribuições se definiriam em lei, e esta conferia à Procuradoria-Geral da República aquela dupla função. Foi a Constituição de 1934 que institucionalizou a Advocacia Pública da União, embora com a denominação de Ministério Público, como um dos órgão de cooperação nas atividades governamentais (arts. 95-98). É aí também já se acenava para a instituição no âmbito dos Estados (art. 97). Essa institucionalização perdurou nas Constituições de 1946, num título autônomo (Tít. III), e perdurou nas Constituições de 1967 e 1969, naquela no título do Poder Judiciário e nesta no título do Poder Executivo, e nelas com referência explícita ao Ministério Público dos Estados, que nestes tomou um sentido diferente do Ministério Público Federal.

4. Cumpre, agora, justificar a declaração feita acima de que foi a Constituição de 1934 que institucionalizou a Advocacia Pública da União, embora com a denominação de Ministério Público. Ora, no Império, o Ministério Público já exercia as funções de Advocacia Pública, mas, então, as atribuições típicas de Ministério Público, ou seja, de custus legis e da persecutio criminis, preponderam sobre as de defesa judicial dos interesses da Fazenda. Mas, na República Federativa, essa equação se alterou fundamentalmente. A competência penal e sobre interesses privados indisponíveis passou para as Justiças Estatuais e pois para o Ministério Público dos Estados. Quer dizer, descentralizaram-se as funções do Ministério Público, de tal sorte que o Ministério Público Federal se tornou fundamentalmente um órgão de defesa dos interesses da União em Juízo. As funções de Ministério Público se tornaram marginais, e mais ainda quando a Constituição de 1937 extinguiu a Justiça Federal. Não foi sem razão que os membros da instituição se chamaram Procuradores da República. Com a criação de Justiças Federais Especiais, Eleitoral, do Trabalho, pela Constituição de 1946, surgiram ramos do Ministério Público da União junto dessas Justiças, mas o ramo chamado Ministério Público Federal continuou sendo tipicamente Advocacia Pública da União, embora acumulasse também atividades típicas de Ministério Público, especialmente depois da recriação da Justiça Federal de primeira instância.

5. Isso significa, como, aliás, já observara Tomás Pará Filho, no I Congresso Nacional de Procuradores de Estado, que, diante da tradição firmada em nosso sistema administrativo, que a Advocacia Pública tem posição equivalente à do Ministério Público,3 tanto que ambas as funções foram sempre desempenhadas, na União, por uma única instituição, e, não só, mas até pelos mesmos membros. Portanto, nada há a estranhar quando a Constituição vigente distinguiu as atribuições de defesa da sociedade e do Estado, em instituições distintas: Ministério Público e Advocacia Pública (da União e dos Estados) tinha, como conseqüência, de manter o princípio da eqüipolência entre os seus executores.

6. A propósito desse assunto, cabe invocar a lição de Francisco Campos, em um parecer dado exatamente para o Ministério Público de São Paulo, em defesa da igualdade de vencimentos de seus membros com os membros da magistratura, como previa o art. 61 da Constituição paulista de 1947. Eis o texto: "Toda vez que um serviço, por conveniência pública, é erigido em instituição autônoma, com capacidade própria de decisão, ou com a capacidade de decidir mediante juízos ou critérios da sua própria escolha, excluída a obrigação de observar ordens, instruções, injunções ou avisos de autoridades estranhas ao quadro institucional, com o fito de evitar infiltrações de natureza política no exercício de sua competência deliberativa ou decisória, impõe-se a garantia aos funcionários incumbidos de tomar as deliberações ou decisões institucionais, da necessária independência, mediante a única técnica eficaz, empregada em relação à Justiça, de lhes assegurar a estabilidade nas funções e nos soldos. "Como e quando se impõe o emprego dessa técnica de organização de determinado serviço público é uma questão de política legislativa no mais alto sentido da expressão. "Se a técnica em questão deva ser objeto de norma constitucional, dependerá tão-somente do grau de independência que o legislador constituinte queira assegurar ao serviço, pondo-o a coberto não somente a discreção do Executivo, como, por igual, do Poder Legislativo. Se, pela natureza do serviço, o legislador constituinte entende que deve imunizá-lo à ingerência de ambos os poderes, nada há que o impeça de fazê-lo. "O fato de que os vencimentos dos funcionários são fixados mediante iniciativa do Poder Executivo e deliberação do Poder Legislativo, não impede que na própria Constituição, para casos especiais, em que a conveniência pública aconselhe subtrair ao arbítrio do Executivo ou do Legislativo a fixação de vencimentos de determinados funcionários, o legislador constituinte não o possa fazer, sem que em nada desnature aquela competência privativa dos dois mencionados poderes."4

7. Ora, o que Francisco Campos quis dizer nessa longa passagem foi que a institucionalização de um serviço público, como o da Advocacia Pública, que resulta dos "novos reclamos da sociedade em transformação", importa, conseqüentemente, em lhe assegurar estabilidade de funções e dos vencimentos. A Advocacia Pública assume, no Estado Democrático de Direito, mais do que uma função jurídica de defesa dos interesses patrimoniais da Fazenda Pública, mais até mesmo do que a defesa do princípio da legalidade, porque lhe incumbe igualmente e veementemente a defesa da moralidade pública, que se tornou num valor autônomo constitucionalmente garantido. Não é que essa defesa lhe escapasse antes do regime constitucional vigente. Mas, então, o princípio da moralidade tinha uma dimensão estritamente administrativa, quase como simples dimensão da legalidade, ligada aos problemas de desvio de finalidade. Agora não, porque a Constituição lhe deu um sentido próprio e extensivo e abrangente da ética pública. O exercício de uma tal missão requer garantias específicas contra ingerências e contra atitudes mesquinhas de congelamento de remuneração. Tomás Pará Filho relata um caso do Advogado do Estado o "Dr. Pero Fausto Pegado de Azevedo, que, no estrito cumprimento dos deveres de seu cargo junto ao Tribunal de Contas do Estado, opinara contra a aprovação de contas de antigo Secretário de Educação, concluindo, ainda, pela responsabilidade do mesmo pela malversação de dinheiros públicos; e, por assim o ter feito, fora intempestiva e arbitrariamente afastado de suas funções, pelo Governo da época".5 É bem verdade que o Conselho Seccional da Ordem dos Advogados de São Paulo deliberou, por unanimidade, no sentido de desagravá-lo, mas isso não lhe restituiu a função.

8. Isso tudo quer mostrar que a institucionalização da Advocacia Pública em nosso País é da tradição do nosso constitucionalismo, que a teve sempre de mistura com as funções do Ministério Público, de onde ressai a eqüipolência de funções que justifica a igualdade de vencimentos. A Constituição de 1988 avançou nessa institucionalização, mas deixou dúvidas que serviram de anteparo a distorções contra a efetivação do princípio da isonomia que ela instituiu, exatamente como uma das garantias da função.

*José Afonso da Silva é Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Professor Livre-docente de Direito Financeiro, de Processo Civil e de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP; Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG; Procurador do Estado de São Paulo.

Este artigo foi proferido em palestra na aula inaugural da Escola Superior de Advocacia do Estado do Rio Grande do Sul em 7/03/94, publicada na Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul.

NOTAS
(1) Cf. “A Advocacia do Estado e os interesses jurídicos da Administração no Estado de Direito”, Anais do Congresso Nacional de Procuradores de Estado, pp. 27 e 28.
(2) Cf. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, Ministério da Justiça, 1958, pp. 273 e 372.
(3) Cf. Estudo citado, p. 42.
(4) Cf. “Poder Judiciário” – Garantias constitucionais – Administração Pública – Ministério Público”, RDA 62/328-329. Cf. também Tomás Pará Filho, estudo citado, p. 29, nota 5A.
(5) Cf. estudo citado, p. 45, nota 22.

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