sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Advocacia-Geral da União – Finalmente a Racionalização

*Mário Bernardo Sesta

Ressalta, dentre outras inovações introduzidas no acervo institucional brasileiro pela Constituição Federal de 1988, a criação da Advocacia-Geral da União, órgão incumbido do aconselhamento jurídico e do patrocínio judicial do interesse publico, enquanto interesse do Estado, no plano federal.

Desde há muito que o modelo português, no qual essa atividade competia ao Ministério Público, junto com a iniciativa da ação penal pública e a fiscalização da lei, vinha expondo seu esgotamento.

Verdade que a advocacia do Estado foi a atividade precípua dos Procuradores D´ El Rey, criados por Dom Affonso III, em 14 de fevereiro de 1289, origem do Parquet no universo luso-brasileiro, na opinião dos melhores historiadores da instituição. Aqueles agentes reais só secundariamente exerciam a iniciativa da ação criminal, quando a pena comportasse condenação pecuniária em prol da Coroa. Trazido para o Brasil Colônia, esse modelo foi herdado pelo Império independente e repassado à República, tendo vigorado, no plano federal, até a inovação de 1988.

Mas, embora por muito tempo ainda a defesa judicial da União tivesse ficado a cargo do Ministério Público Federal, a instituição, como, de resto, de um modo geral em toda parte, vocacionara-se precípuamente seja para a iniciativa da ação penal seja para fiscalização da lei, competência esta agregada por influência francesa, segundo os contornos que o Parquet adquiriu à época do Império Napoleônico.

Na realidade, o modelo português não mais comportava o enorme alargamento da atividade administrativa, tomada em sentido técnico, maiormente exercida pelo órgão do chamado Poder Executivo, seja porque esse alargamento não raro propiciava situações em que o interesse público enquanto interesse estatal conflitava com o interesse público enquanto interesse da sociedade, criando para o Parquet o constrangimento do patrocínio simultâneo de interesses antagônicos, seja porque a atual amplitude da competência matriz dos antigos Procuradores D´ El Rey passava a oferecer complexidade progressivamente crescente e exigir trato fortemente especializado.

No plano estadual, a solução dicotômica já vinha sendo adotada, mostrando sua excelência desde os anos 60 e 70, quando surgiram as primeiras Consultorias ou Procuradorias Gerais do Estado, com a incumbência do aconselhamento jurídico e patrocínio judicial do interesse público enquanto interesse estatal, no caso, estadual. A do Rio Grande do Sul, por exemplo, criada em 1965, alcançou notáveis padrões de eficiência, que ainda mantém, e conquistou grande e merecida importância hierárquica no plano institucional do Estado, esta infelizmente abalada por omissão deliberada do último governo e ainda não restabelecida.

Tudo indica, porém, e especialmente a nomenclatura escolhida, que o legislador constituinte inspirou-se, menos na experiência estadual, do que o pioneirismo italiano. Efetivamente, na Itália, logo após a unificação, a competência relativa ao aconselhamento jurídico e patrocínio judicial do interesse público enquanto interesse do Estado, foi subtraída do Pubblico Ministero, que permaneceu com a iniciativa da ação criminal e a fiscalização da lei, e atribuída à Avvocatura Erariale (1876), depois Avvocatura dello Stato (1913).

O fato de a atividade administrativa ser, por definição, sujeita sempre ao regime da legalidade estrita, somado à amplitude que essa atividade veio com o tempo a adquirir, fez com que o modelo lusitano determinasse o surgimento de inúmeros serviços jurídicos setoriais, tanto no âmbito da administração direta da União, com o surgimento de carreiras específicas, seja no vasto universo da administração indireta.

Essa realidade estruturalmente fragmentada, que, em grande parte ainda sobrevivia, era evidentemente incompatível seja com a própria existência da AGU seja com as condições mínimas de eficiência dos serviços prestados.

Finalmente, a MP nº 2.048-26, de 29 de julho de 2000, veio possibilitar a racionalização das atividades da AGU. A pluralidade de carreiras foi substituída pela carreira única de "Procurador Federal" para a qual foram transpostos também os agentes dos serviços jurídicos setoriais esparsos que detivessem situação funcional regularizada em cargos jurídicos efetivos e funções correspondentes.

Essa unificação, que, como sempre ocorre em situações similares, enfrenta naturais e compreensíveis resistências, é, no entanto, fundamental para que a AGU tenha condições de atuar com os níveis de excelência que a relevância de suas atribuições exigem, mediante a unidade de comando, a homogeneidade das posições sustentadas e a univocidade do discurso jurídico expendido na defesa do interesse público, enquanto interesse da União. Sem falar na uniformização do tratamento remuneratório dos agentes agora reunidos numa mesma carreira, regra basilar de justiça no tratamento pecuniário daqueles que exercem atividades de mesmo conteúdo ou mesma hierarquia institucional. Alias, nesse terreno, permanece cristalino o indicativo, indireto mas de irretorquível eloqüência, contido no § 2º, do art. 29, do ADCT/88.

Do ponto de vista da legalidade da medida, militam em seu prol seja o princípio constitucional da eficiência (CF/88, art. 37), sobejamente aquinhoado com a unificação, seja o fato de que os servidores atingidos pela medida racionalizadora ou são concursados nas carreiras e órgãos de origem ou tiveram sua situação funcional estabelecida por força da disposição constitucional expressa no art. 19, do ADCT/88, condições, de resto, ressalvadas no art. 40, da referida MP. Isso sem contar, o que é fundamental, que todos exerciam funções pertinentes às da nova carreira.

Recentemente, aliás, a propósito de medida similar, o STF decidiu, terminativamente, pela irrepreensibilidade de transposição, para uma carreira única, dos Fiscais de Tributos Estaduais e dos Auditores de Finanças Públicas, do Rio Grande do Sul, herança da antiga estrutura fazendária do Estado e que desempenhavam idênticas funções, e funções também idênticas às dos cargos da nova carreira destinada a unificar as que se extinguiam.

Efetivamente, tanto lá como cá, seria desarrazoado desperdício de recursos humanos altamente qualificados, optar por novo recrutamento, através de concurso público, sem antes aproveitar, pela via da transposição, agentes cuja situação funcional já está regularizada, precisamente em relação a cargos com atribuições correspondentes às daqueles para os quais se venha a dar a transposição.

De resto esse tipo de solução, certamente à conta de sua maior racionalidade, esteve sempre presente no passo inicial das reorganizações dos mais diversos setores do serviço público na nossa história administrativa.

*Advogado, Procurador-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, por duas vezes, Professor da UFGRS e da PUCRS e primeiro Presidente da Associação dos Procuradores de Estado. ANAPE. 

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_16/artigos/art_racionalizacao.htm

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